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segunda-feira, 2 de maio de 2011

COMPARTILHANDO A ARTE DE ESCREVER - Nova postagem do livro

Título: A boneca de porcelana.


Por que será que as coisas nunca dão certo na vida? Bradou em voz alta aquela jovem de pele clara e rosto tipo “boneca de porcelana”. Depois do seu questionamento (que mais parecia um desabafo do que propriamente uma pergunta) ecoar por todo recinto, aquele homem de porte grande que estava no palco ao seu lado, dirigiu-se ao público a sua frente e fez a seguinte pergunta:

“Se houver alguém em nosso meio capacitado a responder a pergunta desta jovem fique de pé e se apresente”.

Eu que estava sentado bem no canto do auditório, próximo à parede direita de quem entra, falei em voz baixa:

“Será que alguém no meio desta multidão é doido o suficiente para se apresentar diante de toda essa gente e tentar responder a uma pergunta tão subjetiva como essa?”

Mas para minha surpresa e de outros que pensaram de igual forma, muitas pessoas levantaram de seus lugares colocando-se a disposição para expor sua teoria sobre a pergunta da “boneca de porcelana”. Particularmente achei curioso alguém ter coragem de tentar responder uma pergunta tão vasta como essa (Por que será que as coisas nunca dão certo na vida?), ainda mais nas condições em que tudo estava acontecendo, em meio a um público enorme, barulhento e provavelmente sem ter muito tempo para defender sua tese.

Mas a oferta de respostas naquele lugar foi extremamente desproporcional aquela única demanda de pergunta, por isso, aquele homem de porte grande escolheu aleatoriamente sete pessoas dentro do grupo que se prontificou, dando a cada uma delas um tempo máximo de cinco minutos para expor sua teoria sobre a questão existencial apresentada pela “boneca de porcelana”. As sete pessoas ficaram enfileiradas, tendo uma a uma o direito de utilizar o microfone para fazer sua exposição dos fatos. O tempo limite foi levado em conta rigorosamente, ao ponto de alguns deles terem tido o sinal do som cortado, quando tentaram ultrapassar intervalo de tempo que havia sido estabelecido previamente pelo sujeito grandalhão.

Do discurso proferido pelo primeiro pseudofilósofo ao sétimo, não houve nenhum tipo de concordância em suas falas, sendo que em determinados momentos como ouvintes, tínhamos a estranha sensação de que eles estavam respondendo à outra pergunta, completamente diferente daquela que havia sido elaborada pela jovem “boneca de porcelana”. Para ser honesto na minha narrativa e ao mesmo tempo tomando cuidado para não ser injusto, nada do que eles falaram somava-se e quase tudo que foi dito diminuiu o discurso do outro. Do início ao final das apresentações não foi possível se chegar a nenhuma síntese entre eles, pelo contrário, a todo tempo observamos uma dialética que expunha uma tese seguida de antítese, bem ao estilo platônico.

Enquanto a exposição acontecia na estreita escada que cortava o centro do auditório, a “boneca de porcelana” e o homem grandão estavam no palco, de onde podiam ouvir e ver cada um dos sete se esforçar ao máximo para encontrar nos dois ou pelo menos em um deles, uma acolhida calorosa as suas teorias. Mas infelizmente, pelo menos para os grandes filósofos da noite, nenhum deles expressou nenhum sinal de concordância ou satisfação com o que foi apresentado, tendo até mesmo um dos candidatos, o último da fila dos sete, chegado ao extremo da sandice de associar o sofrimento humano (provocado por coisas do tipo “Por que será que as coisas nunca dão certo na vida?”) a redução do consumo de carne suína pelas pessoas.

“Não dá para acreditar como alguém, pelo menos em sã consciência, pode ligar uma coisa dessas, o consumo de carne suína, a felicidade do ser humano”. Mas foram explicações desta natureza que surgiram do consciente, que acredito deveria estar inconsciente naquela noite, das pessoas que estavam naquela fila. Ao final da fala do sétimo candidato, agradeci no meu íntimo ao homem grandalhão por ter dado oportunidade apenas a sete pessoas, número que não representava nem 10% do grupo que se propôs a esclarecer o mistério da vida da “boneca de porcelana”.

O público presente com certeza não agüentaria mais ninguém tentando explicar as frustrações humanas, usando para isso, as mais loucas explicações produzidas por mentes que não compreendem nem a sua própria insatisfação. Afinal de contas, era isso que todos estavam buscando naquele local, respostas para suas respectivas frustrações da vida.

Independente desse massacre intelectual a que todos nós fomos submetidos, promovido pelo grupo dos sete sábios noturnos, aquela foi uma noite de muitas surpresas e talvez a melhor que aquele público tenha vivido naquele lugar. Tudo ocorreu sem nenhum planejamento prévio, mas ao mesmo tempo sem nenhuma desordem que comprometesse o propósito daquela reunião. Desde o momento em que a “boneca de porcelana” subiu correndo no palco e arrebatou o microfone do grandalhão bradando “no ar” seu desabafo, foi possível observar que a sucessão dos acontecimentos tomou corpo e vida própria, fazendo com que a noite tivesse para todos nós, que estávamos na platéia, um ritmo bem diferente, mas dentro de uma musicalidade excepcional.

Havia um tipo de controle naquela situação que aparentemente parecia descontrolada, que não estava mais na mão do grandalhão e nem da “boneca de porcelana”, mas transcendia aquele lugar, as pessoas responsáveis por aquela reunião e todas as outras que se encontravam naquela noite no auditório. A sensação era que de longe alguém movia os acontecimentos, como dedos que tocam um instrumento fazendo com que cordas pressionadas da forma correta e no tempo preciso, produzam harmonia e beleza musical.

Ao mesmo tempo também sentíamos uma ação imanente na situação, como se esse “mesmo controle” pudesse ter estas duas características opostas atuando ao mesmo tempo. Por isso, havia uma confiança muito grande no ar e no coração das pessoas, que nos permitia viver aquela situação inesperada, criada pela “boneca de porcelana”, com a certeza de que tudo acabaria bem não só para ela, mas para todos os presentes que seriam beneficiados por essa maravilhosa experiência. Narrando desta forma alegórica, nossa descrição pode parece ao leitor ser algo difícil de entender, mas destaco também, que os acontecimentos daquela noite são muito complexos para tentar explicar, já que estamos tratando de uma experiência humana coletiva, algo difícil de compartilhar com outros que não estavam presentes.

Encerrada a fala dos sete candidatos ao esperto da noite, o grandalhão retomou o controle da situação com certa tranqüilidade, retomando da mão da jovem o microfone e agindo de forma inteligente e sagaz, sem diminuir a fala de ninguém que tenha apresentado um discurso. Ele simplesmente se voltou para a jovem que ainda se encontrava no palco, agora já meio anestesiada por se dar conta do aparente tumulto que ela acabou provocando na reunião, e lhe fez a seguinte pergunta:

“No seu íntimo, você acredita mesmo que alguém aqui ou em algum lugar do mundo pode responder essa pergunta a você ou a eles mesmos?”

Essa pergunta tão simples, mas ao mesmo tempo tão profunda, causou um grande impacto no público e também na “boneca de porcelana”, ao ponto dela desabar em lágrimas caindo nos braços do grandalhão, que se valendo do seu grande porte, pode apoiá-la como um pai que envolve sua pequena criança, quando ela vem chorando depois de se machucar com alguma brincadeira infantil.

Essa cena bucólica, que foi presenciada pelo público naquela noite entre os dois personagens que estavam no palco, tinha algumas semelhanças e ao mesmo tempo grandes diferenças com a vida real da “boneca de porcelana”. Em sua existência, pelo menos até aquele momento, ela também havia se machucado, mas não numa brincadeira infantil como descrevemos acima, mas sim com as adversidades e a sua forma de lidar com elas. Em todo seu período de vida ela nunca aprendeu que nenhum de nós está imune a viver situações de dor, talvez por isso, ela tenha lidado tão mal com tudo que lhe aconteceu, que mais tarde todos nós tomamos conhecimento, piorando ainda mais suas dores e angústias.

Diferente das crianças que sofrem corte nos braços, pernas e em outras partes do corpo físico, nossa jovem estava ferida na sua alma, local de difícil acesso para uma cura, onde o grandalhão tentou chegar desferindo sobre ela uma pergunta simples, mas com um caráter profundamente reflexivo. Por isso, aquele pequeno momento no palco se tornou para a “boneca de porcelana” uma terra prometida, um lugar de conforto que ela ainda não havia experimentado em sua transição de criança para a vida adulta. Fora daquele palco, ou seja, na sua vida real, não havia nenhum grandalhão para recebê-la nas vezes em que caiu, foi machucada e também machucou. A ausência desse tipo de segurança, que o ser masculino passa na formação do caráter, tornou sua dor bem maior do que ela aparentemente era, já que o sentimento de abandono e solidão potencializava a dor e a confusão provocada por suas feridas emocionais.

Esse momento no palco, que de alguma forma mudaria a vida da “boneca de porcelana” e também de muitas pessoas que estavam ali, só foi possível porque além do grandalhão confrontá-la da maneira correta, havia um controle sobrenatural naquele lugar e sobre todas as coisas que estavam acontecendo naquela noite. Havia no coração de Deus uma disposição de mudar a vida de muitas pessoas naquele auditório e o caminho escolhido para isso, foi à vida da “boneca de porcelana”.

Depois de algum tempo, não me lembro o quanto, mas certamente foi um intervalo maior que dez minutos, os dois se desprenderam daquele contato personificado de pai e filha e ela procurou se recompor, já que por conta do muito chorar, seu rosto e sua roupa estavam ambos molhados e amassados. Ele por sua vez, sem nenhuma pressa, aguardou a “boneca de porcelana” terminar o que estava fazendo, para só depois reiniciar sua fala ao grande público.

Sem medo de errar, posso afirmar ao leitor que o momento de quebrantamento da jovem naquele palco nos braços do grandalhão foi o ápice daquela noite. Por mais incrível que possa parecer, ficamos com a sensação que cada um de nós havia desabafado junto com ela naquele palco, colocando para fora todos os nossos traumas e feridas obtidas com as brincadeiras da vida adulta. Paralelamente também colhemos o conforto e a segura dos braços do grandalhão, que naquele momento, sem nenhuma explicação lógica, havia assumido a figura paterna de todo o auditório. Quase todos que estavam presentes haviam chorado junto com a “boneca de porcelana”, porque a dor daquela jovem no palco representava nada mais e nada menos que o drama das nossas próprias vidas. Todos nós estávamos decepcionados com o nosso viver e estávamos ali naquele auditório porque havíamos ouvido falar que existia um caminho ou uma solução para nossa crise existencial. Às vezes, quando uma crise como essa bate à nossa porta, é difícil para as outras pessoas entenderem que diferente de muitos doentes que lutam ardentemente contra a morte, nós lutamos para não olhar para ela como nossa única opção nessa vida.

Quando a coisa chega nesse ponto, surge em nós um misto de desespero e loucura que nos faz chegar aos extremos, com foi o caso da nossa “boneca de porcelana”, que no ápice do seu conflito subiu correndo no palco e tomou o microfone do grandalhão à força, simplesmente para soltar do seu interior um desabafo, que naquele momento, nada mais era do que uma forma de lutar contra o desejo de morrer. Ela precisava fazer o que fez, caso contrário, teria se suicidado na porta do teatro. A pressão ficou grande demais para ela e a insatisfação com a vida atingiu, no seu caso, o ponto máximo aceitável por um ser humano. Naquela situação não havia outra saída, sua única opção era dar uma de louca ou, ficar louca de verdade, tendo a morte como a única solução para sua vida.

Percebendo que ela já havia se refeito e estava também serena, completamente diferente do estado inicial quando invadiu literalmente o palco, roubando a cena naquela noite, saindo de um completo anonimato para se tornar personagem principal da reunião, ele retornou sua fala, pedindo a todos os presentes que seguissem o exemplo da “boneca de porcelana”, que havia conseguindo naquele momento organizar suas emoções e também retomar o controle de sua razão.

Os ouvintes colocaram, até mesmo porque eles tinham interesse em saber qual seria o desfecho da situação, todo o lugar em ordem o mais rápido possível, cada um tomando seu respectivo assento e também se recompondo para ouvirem o que viria a seguir. O grandalhão, um homem muito perspicaz e sábio, havia se dado conta que aquela seqüência de acontecimentos com a jovem no palco, havia realmente tocado em quase todos os presentes nas suas próprias frustrações, abrindo com isso uma porta para o lugar das emoções reprimidas, algo que ele há muito vinha trabalhando com o grupo para conseguir. A importância da abertura desta porta está na cura de certas emoções. O objetivo dela é jogar para fora todo lixo emocional, provocado por traumas e conflitos, que está cheirando mal, atraindo moscas e provocando enfermidades emocionais, físicas e espirituais.

Apesar de um porte grande e uma voz muito grossa, aquele homem conseguia falar com muita tranqüilidade, o que de certa forma cativava o público presente, fazendo com que as pessoas realmente dessem atenção ao que ele falava. Valendo-se dessa sua característica e também do momento oportuno, o grandalhão lançou um desafio à jovem de “boneca de porcelana” e também ao público presente. O discurso dele foi mais ou menos assim: “Eu estou sendo muito enriquecido nessa noite com a presença desta jovem e o seu dilema. Creio que ela também, o que podemos comprovar olhando para o seu semblante neste momento. Quanto a vocês, não me lembro de nenhum momento onde nosso auditório tenha sido tão impactado, por isso, quero propor estendermos nossa reunião nesta noite pelo tempo que for necessário, para que essa jovem nos conte sua história. Acredito, mediante tudo que está acontecendo, que ao final desta narrativa ela sairá daqui completamente diferente da forma que chegou, como muito de vocês”.

O grandalhão não precisou fazer muita força para convencer o público da sua sugestão e nem colocar ênfase em suas palavras, já que sua proposta caiu como luva sobre todos que participaram daquela experiência coletiva. Mas e quanto à “boneca de porcelana”, será que ela estaria disposta a empreender essa jornada diante de pessoas que nunca antes tinha visto?

A resposta imediata do público, bem como sua total adesão, trouxe uma grande responsabilidade sobre a jovem, já que agora, dependeria apenas delas dar seqüência ao que havia sido iniciado naquele lugar. Percebendo que a “boneca de porcelana” estava insegura, o grandalhão mais uma vez usou de sabedoria para falar com ela, baixando a voz e se esforçando para não ser pesado, falando bem próximo ao seu ouvido: “Não se sinta pressionado por ninguém, fique a vontade para não aceitar minha proposta, mas... eu sinceramente acredito que seria uma oportunidade única para uma mudança de vida, sua e dessas pessoas que estão aqui”. Mais uma vez ele conseguiu impactar aquela jovem, arrancando dela sua concordância em narrar sua trajetória de vida até aquele momento, bem como todas as “brincadeiras” que lhe causaram feridas na alma.

Apesar de estar também impactado com tudo que havia presenciado até aquele momento, eu não conseguiu entender como toda aquela multidão havia se proposto a ficar, sabe-se lá até que horas, para ouvir a história de vida de uma “boneca de porcelana”. Havia algo, só consigo definir como uma ação do coração de Deus, nos contagiando em prol do bem estar daquela jovem. Estávamos ardentemente preocupados em que houvesse um desfecho favorável para sua vida e suas angústias, o que soava em nossos corações como um desejo de ajudar, porque para nós, era inadmissível ela sair dali sem uma mudança definitiva de vida.

No fundo era notório que todos esses sentimentos confusos e surpreendentes tinham haver com nossas próprias fragilidades, de alguma forma, fomos fortalecidos ao sentir a dor da “boneca de porcelana”, já que por ela, toda aquela multidão desenvolveu um sentimento de empatia. A força que experimentamos naquela noite era atípica, sendo que a maioria de nós nunca havia passado perto de um sentimento como esse, ao ponto de começarmos acreditar que também havia uma solução para nossas próprias vidas.

Não posso deixar de pensar que foi necessário primeiro sofrer a dor do outro, para tudo começar acontecer nas nossas vidas. A experiência de sofrer pela infelicidade do outro era desconhecida para a maioria de nós, já que nossa tendência pós-moderna nos conduz a um individualismo que cria fortalezas à nossa volta, de tal maneira que nos preocupamos sempre com o nosso umbigo, mas nunca com a necessidade do nosso próximo. O pior, neste tipo de situação, é que às vezes o nosso próximo é alguém importante na nossa vida como: cônjuge, filhos, pais e até mesmo aqueles que chamamos de amigos.

Descaso com os relacionamentos e uma vida baseada na individualidade (vulgarmente conhecido como: em primeiro lugar eu, em segundo eu ..... e eu também) são os responsáveis pelas frustrações da maioria das pessoas que estavam naquele lugar. São homens e mulheres que adotaram um ritmo e modo de vida onde o outro (seja quem for) não é mais o outro, mas apenas alguma coisa no contexto da vida. Essa forma de viver que muitas vezes é confundida com alguma coisa moderna, não passa de um formado tipo “homem das cavernas”, onde a humanidade das pessoas é colocada como uma característica pejorativa e não um selo de nossa existência. Quando cônjuge, filhos, pais e amigos se transformam em alguma coisa em nossas vidas, com certeza nela, não existe nem lugar para Deus.

Essa forma de viver que aos olhos de muitos é vista como sábia, arrasou a vida de médicos, professores, carpinteiros, gerentes, comerciários, diretores e tantos outros, que nesse momento não se justifica relatar. O cenário que acabamos de descrever reflete bem o público daquela noite, era esse tipo de gente que estava naquele auditório quando tudo isso aconteceu, e que de alguma forma, foram conectados com a vida da “boneca de porcelana”.

Sem querer tirar nenhuma conclusão precipitada, mas também não sendo covarde já que fui testemunha ocular de todos os fatos, arrisco dizer aos leitores que a dor revelada pela alma daquela jovem era tão grande, que mesmo sem ter esta intenção, “seu grito de dor” acabou funcionando como uma flecha tirada de uma aljava e lançada na direção do alvo, atingindo o local mais profundo do nosso homem interior e despertando quem estava oculta naquele local, nossa humanidade.

Ela estava lá bem no fundo, jogada por nós mesmos no decorrer da vida mediante escolhas erradas, que resultaram em feridas emocionais que endurecem nossos corações. O homem e a mulher têm dificuldade para entender que eles são genuinamente humanos e quando tentam se afastar desta realidade cria-se atrito dentro deles, trazendo dor à alma e perturbação à sua existência. Em resumo, naquela noite nossa humanidade foi despertada por aquele grito de dor, o que nos possibilitou exercer empatia pelo sofrimento daquela jovem e também perceber que o caminho que nos fortaleceu em relação a ela, é o mesmo que também vai nos fortalecer em relação as nossas questões existenciais e emocionais.

Minha tese, apesar de parecer teórico, podia ser comprovada de forma muito clara na expressão de cada rosto ali presente. A sensação que habitava em cada um deles era de vitória, ou pelo menos do início dela. Como acontece na entrada de um estádio de futebol no jogo que define a final da copa do mundo, todos ali estavam confiantes que levariam para casa seu troféu de campeão, mais precisamente sobre o time de adversários que lutam com todas as forças contra nossa alegria e prazer de viver.

Diferente do futebol, onde os onze jogadores de cada time estão unidos e organizados em campo para vencer o adversário, em nossa vida temos sempre alguém do nosso time que acaba chutando a bola na rede errada. Mas o pior é que esse “traidor” não é ninguém de fora, mas de dentro, ele representa no jogo da vida nossas ambições, baixa moral, arrogância, orgulho e tudo aquilo que temos de pior e damos vazão, tendo essas coisas prioridade sobre todas as outras que realmente representam nossa humanidade, no “sentido original desta palavra”.

A jovem ainda se preparava para dar início a sua narrativa e a expectativa era grande em nosso meio, como citei anteriormente, me senti e creio que todos, num estádio de futebol aguardando o início da partida final. Neste momento um pensamento me ocorreu: “Ninguém aqui tem dúvida que até o final da estória da “boneca de porcelana” muitas pessoas terão suas vidas transformadas, o que será um acontecimento muito marcante, mas será que tem alguém neste local atento em registrar esses acontecimentos passo a passo para um posterior compartilhar?” Nesse momento entendi que minha presença ali naquela noite tinha um propósito bem diferente dos demais, apesar de também ter sido impactado como os outros.

A partir deste momento vasculhei minha mochila azul com propaganda de uma empresa de engenharia na área de óleo e gás, buscando meu notebook e o mp4, que logo entrou em ação gravando tudo o que se desenrolaria daí em diante. A bandeja da moça que servia o palco acabou funcionando como ponte para o meu mp4 chegar até a mesa de apoio que estava bem próxima dos “artistas” principais da noite, que continuavam no palco se preparando para a fala da jovem. No computador, que coloquei no meu colo e dentro da pasta para não chamar atenção, comecei a registrar os fatos já acontecidos e minhas impressões, além de recolher alguns comentários de outras pessoas próximas ao meu assento, já que muitos estavam ainda de pé aguardando ansiosamente a retomada da fala da jovem.

Mesmo sem saber exatamente o que faria com o material e de que forma ele poderia ser compartilhado depois dessa noite, cedi ao impulso quase irresistível de registrar tudo que fosse possível, até porque, naquela noite as coisas estavam acontecendo fora de uma regra específica. Nesse momento, o grandalhão pediu silêncio ao auditório para que a jovem pudesse dar início. Ela se aproximou novamente do microfone, que desta vez foi cedido a ela em vez de arrebatado, olhou para todos e tentou esboçar uma saudação. Meio que sem jeito disse que tinha 22 anos e que a princípio não gostaria de se identificar revelando seu nome, mas que não deixaria de lado nenhum outro detalhe de sua vida, até porque, ela mesma desejava muito ouvir dela própria, tudo que havia vivido até chegar aquele auditório.

A princípio parecia contraditório ela dizer que queria ouvir dela, o que ela própria havia vivido, mas se pensarmos com cuidado no seu comentário, logo percebemos como isso é realmente necessário para nos conhecermos melhor e mais profundamente. Sem sombra de dúvida, muita coisa já havia mudado naquela jovem, como falamos mais no início, ela realmente já estava no caminho de uma grande descoberta, ela estava se descobrindo. Ao olhar para os lados, foi fácil perceber como a simplicidade de sua fala causou efeito na platéia. Era como se “ficha caísse” naquele momento, coisas do tipo: “Como foi que eu nunca pensei nisso antes, já ouvi tanta gente falar de mim, mas nunca parei para ouvir a mim mesma sobre minha própria vida”, povoou a mente das pessoas e ficou estampado no rosto de cada um. Mesmo antes de ela detalhar os acontecimentos, sua vida já estava trazendo benefícios às outras pessoas.

Depois de tomar fôlego, informou ao público que na ausência de seu nome ela poderia ser conhecida por eles como “boneca de porcelana”, já que no fundo, esse codinome tinha mais haver com sua vida do que o seu nome próprio. A seguir pediu desculpas pela invasão e pela interrupção causada na reunião, mas confessou que toda essa confusão mexeu de forma muito positiva com ela, por isso, concordou em compartilhar sua vida naquela noite com todos, crendo que ela sairia dali depois disso como outra pessoa.

“Nasci num lar completamente disfuncional, ou seja, a minha família era um órgão que apresentava distúrbio na sua função principal que é transmitir amor, segurança, conforto e outros necessários a um bom desenvolvimento humano. Por conta disso, minha família gerou, sem nenhuma exceção, pessoas com personalidades distorcidas.”

“Eu sou a caçula de três irmãos e a única do gênero feminino, sendo que minha pouca idade e o meu sexo diante dos meus irmãos nunca foi sinônimo de proteção, pelo contrário, eles me agrediam constantemente de forma física e moral. Começo meu discurso falando do “saco de pancada” e da “palmatória”, que são os meus dois irmãos, porque foi através deles que sofri minha primeira decepção na vida. Ainda na minha tenra idade, quando comecei a ter entendimento das coisas, percebi que nós três éramos vítimas de nossos pais, por isso, acreditei ingenuamente que pelo menos eles seriam solidários ao meu sofrimento como eu era com o deles, mas ser vítima no caso do “saco de pancada” e da “palmatória”, gerou neles a vontade de vitimar outros, sendo que eu era a pessoa mais fácil e mais próxima para eles extravasarem esse sentimento.”

Neste ponto ela fez uma pequena pausa para enxugar os olhos, já que o grandalhão a socorreu mais uma vez com um lenço de papel após perceber que algumas lágrimas desciam pela sua face de porcelana. Logo nas suas primeiras frases foi possível percebe que nossa jovem era alguém de certa cultura e conhecimento e que utilizava muito bem as palavras, já que diante de uma situação inusitada como essa, iniciou sua apresentação de forma muito clara. Minha única dúvida naquele momento foi se essa consciência dos acontecimentos já existia ou o fato dela se ouvir, como ela própria havia comentado antes de iniciar sua narrativa, estava fazendo a diferença naquele momento, principalmente para ela. Diante desta interrogação na minha avaliação, optei por deixá-la evoluir no desenrolar da história, para depois, mais a frente, tirar uma conclusão mais confiável. Apesar das lágrimas, ela retornou ao microfone esboçando um ar de confiança em si e no que estava fazendo, já que era nítido o interesse que sua vida havia despertado no público.

“Decepcionei-me porque na minha forma de perceber nossa situação, estávamos todos no mesmo barco, que afundava em alto mar. Na minha lógica infantil, era natural sermos solidários no sentido de um animar e proteger o outro, principalmente eu, que dentro daquele barco, era o passageiro mais frágil e de menor idade. Mas meus irmãos optaram, não sei se essa é a palavra adequada, por devolver tudo de ruim que vinha sobre eles. Entre os dois havia um tipo de pacto, os eles também se agrediam, mas estavam juntos sempre que havia uma oportunidade de se vingar nas outras pessoas, inconscientemente, o que meus pais faziam com eles.”

“Apesar de toda essa descrição negativa, mesmo com meus cinco anos, eu amava meus dois irmãos. Como falei antes, eu tinha muita pena deles, até porque, meu pai era extremamente severo com os dois, não que não fosse comigo, mas com eles assustava só de pensar na forma que meu pai os agredia”. Saco de pancada o mais velho, nessa época com nove anos sofria muito nas mãos de meu pai, que o pegava de jeito com uma só mão, utilizando a outra para estapeá-lo fortemente. Um detalhe importante nessa relação do meu irmão com o pai e que sempre me chamou muito atenção, era o fato dele nunca derramar uma lágrima enquanto apanhava independente da violência que meu pai utilizava, de seus olhos não desciam lágrimas e de sua boca não saia nenhum som, o que de certa forma intrigava meu pai, que se sentia agredido com aquela resposta. Apesar de pequena, minha impressão era que meu pai desejava presenciar sua dor, mas em contrapartida, meu irmão preferia morrer a dar a ele esse gosto. Esse acirramento na relação dos dois me deixava junto com palmatória muito apreensiva, nós nunca sabíamos exatamente até que ponto nosso pai levaria sua agressão e ao mesmo tempo, até onde saco de pancada agüentaria.

Outra pausa, desta vez motivada por um acesso de choro e uma repetição do nome simbólico (saco de pancada) do seu irmão mais velho. Pelo estado emocional que ela expressou naquele momento, era possível perceber que o fim desse duelo entre pai e filho não foi um dos melhores, o que deixou o público com uma expressão abatida, ao pensar no que viria a seguir.

Não havia mais nenhuma dúvida, registrei no meu computador, todo aquele grupo estava de certa forma preso na trama da vida da “boneca de porcelana”, gerando em cada um deles uma grande torcida e até mesmo admiração por aquela jovem, já que a parte do iceberg da sua vida relatado indicava que os outros 90%, que ficam embaixo da água, serão mais terrível do que os 10% que estão na superfície e já relatados por ela naquela noite.

Pela idade média do público no auditório, era razoável concluir que havia um grande número de pais e mães presentes. Sendo assim, afirmo com muita convicção e sem medo de errar, que muitos deles naquele momento começaram a reavaliar sua relação com seus filhos. Talvez, só talvez, não existisse ninguém ali que praticasse contra seu filho o tipo de agressão relatada pela boneca de porcelana contra seu irmão, mas muitas vezes somos agressores de nossos filhos de outras maneiras. A agressão física nem sempre é a mais dolorosa, a que utiliza munição moral e afetiva causam marcas e feridas muitas vezes insuportáveis. Mesmo no caso do saco de pancada, creio que sua maior dor não tinha origem física, mas sentimental, ao concluir que aquele e aquela que deveriam amá-lo a cima de qualquer coisa, o tratavam como um lixo desprezível.

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