Querido visitante, lendo a folha online neste dia me deparei com a matéria abaixo do colunista Hélio Schwartsmann, onde ele compartilha sua visão sobre os atuais acontecimentos no Egito.
Por achar a matéria bem interessante e importante para todos nós, decidi traze-la para seu conhecimento via nosso blog.
Sua análise - que também contém um relato histórico da situação - não se limita ao Egito e seus acontecimento, mas necessariamente é estendida ao mundo árabe/mulçumano por suas ligações históricas.
De forma inteligente, o articulista da Folha nos mostra o tatear das nações árabes nos últimos anos para achar seu lugar e sua maneira de ser dentro do século XXI, mas também, de forma perspicaz nos alerta para os perigos dos grupos mulçumanos que persistem em viver sua religião - usada como medida de unidade árabe - de acordo com o século VI.
No fundo, toda essa confusão trata-se de poder. Mesmo aqueles que colocam a bandeira do Islã como primeira em sua vida, estão na realidade atrás do poder que essas ditaduras acabam implantando, como acontece no Irã por exemplo.
O mesmo argumento - poder - serve também para explicar porque a Arábia Saudita (país árabe/muçulmano) está a favor de Murabak e preocupada com a expansão do Irã e de suas ideias - diga-se de passagem confusas -, que podem com essa agitação no Egito se espalhar pelo oriente médio. O rei saudita – de forma igual aos religiosos - quer manter o poder nas mãos da família real -respeitando o Islã - e não nas mãos de organizações como a irmandade mulçumana.
Oremos para que as nações árabes encontrem seu caminho dentro da democracia e também a Jesus, aquele que pode realmente livrá-los de toda essa confusão espiritual, civil e religiosa.
Em Cristo
Pr. Paulo Cesar Nogueira
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.
Ditadura e religião
Não vejo mais como me furtar a um comentário sobre o Egito. A confusão ali, afinal, pode virar do avesso a geopolítica do Oriente Médio e, por extensão, a do globo.
Comecemos pelos consensos. Existe uma unanimidade no mundo árabe. É a de que os valores ocidentais não podem ser simplesmente importados e implantados sem tradução. Por isso, os países árabes precisam encontrar seu próprio caminho, que deve culminar na união de todas as nações da região. Em minha modesta interpretação, isso tem a ver com a noção de "umma". Modernamente, a palavra pode ser traduzida como "nação". Seu significado primordial, contudo, é o de "comunidade", que idealmente engloba todo o islã e à qual todo bom muçulmano deve submeter-se, sem dissenso (ou quase). O termo, que aparece 64 vezes no Alcorão, é derivado da palavra "umm", que significa "mãe". Uma alternativa de tradução à caetano Veloso seria "mátria". A concórdia para nessa ideia de diferença em relação ao Ocidente e união entre os árabes.
Para lograr esse objetivo, uma parte se voltou para o nacionalismo secular. É dessa tradição que Hosni Mubarak é herdeiro, muito embora o pan-arabismo já tenha contado com representantes mais populares, notadamente Gamal Abdel Nasser (1918-70).
O outro ramo é o dos que apostaram na religião como força unificadora. É aí que se encaixa a Irmandade Muçulmana ("al Ikhuan"). Fundada em 1928, é a primeira representante do pan-islamismo.
No Egito, os nacionalistas seculares, liderados por um grupo de jovens oficiais das Forças Armadas que incluía Nasser e Anuar al Sadat (1918-81), chegaram ao poder através do golpe de Estado que derrubou o rei Faruk 1º em 1952. O pretexto para a deposição foi a derrota dos árabes para Israel na guerra de 1948.
Explorando a ordem mundial imposta pela Guerra Fria, Nasser, que assumira a Presidência em 1956, estabeleceu uma cooperação com os soviéticos e foi incorporando elementos socialistas em sua retórica. A relação do Egito e dos árabes com a URSS, entretanto, sempre foi ambígua e cheia de idas e vindas. Uma das primeiras medidas dos jovens oficiais depois que derrubaram o rei foi eliminar os comunistas egípcios.
O próprio socialismo árabe ("al ishtirakia al arabia"), em parte abraçado por Nasser e, em maior grau, pelo partido Baath (ressurreição), forte na Síria e no Iraque, precisa ser colocado em perspectiva. Era um socialismo adaptado às necessidades, que não incluía, por exemplo, nenhum elemento de ateísmo e não buscava eliminar a propriedade privada. A ideia é que o socialismo não deveria contrapor-se aos valores tradicionais. Um socialismo nesses termos não era estranho à "umma".
Seguindo o projeto pan-árabe, Nasser ensaiou uma união com a Síria em 1958. O "novo" país se chamava República Árabe Unida. A Síria levou três anos para descobrir que tinha virado um feudo do Egito e pular fora.
Mesmo sem grandes sucessos a exibir, Nasser continuava a entusiasmar as massas árabes, no Egito e fora dele. Essa situação durou até a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando os exércitos árabes sofreram uma segunda e ainda mais humilhante derrota para os israelenses.
Nasser ameaçou renunciar, mas a multidão foi às ruas no Cairo para pedir que ficasse. Ficou, mas sem o brilho de antes. O pan-arabismo já entrava em decadência.
Depois da morte de Nasser, em consequência de um ataque cardíaco, em 1970, a Presidência do Egito foi ocupada por Sadat. Ele lançou mais uma guerra contra Israel --a de 1973--, perdeu e, seis anos depois, sob os auspícios dos EUA, assinou uma paz em separado com os inimigos. Em 1981, Sadat foi assassinado por radicais religiosos ligados ao Jihad Islâmico.
Nesse processo, porém, lançou as bases da cooperação com os norte-americanos. A aproximação com os soviéticos e a retórica inflamada do pan-arabismo foram paulatinamente substituídos pela substancial ajuda militar dos EUA, que hoje ultrapassa a marca do US$ 1 bilhão anuais.
Foi nesse contexto, em especial a partir dos anos 80, que a Irmandade e outros grupos religiosos ganharam espaço. Aliás, a "ameaça fundamentalista" é uma das razões a justificar o auxílio norte-americano. Por paradoxal que pareça, é um acerto que agrada a todos: os EUA podem dar dinheiro a um ditador aliado, o ditador recebe a grana com a qual satisfaz os apetites das Forças Armadas, que o mantêm no cargo, e a Irmandade, discretamente tolerada, se consolida como verdadeira oposição, tanto à ditadura como aos EUA e, por extensão, a Israel.
Voltemos, porém, às origens da Irmandade. Seu fundador, Hassan al Banna (1906-49), tinha claro quais eram seus propósitos: "Alá é nosso objetivo; o Alcorão é nossa constituição; o Profeta é nosso líder; 'Jihad' é nosso caminho; e morrer por Alá, a mais alta de nossas aspirações".
Também em seus primórdios, a Irmandade esteve associada aos nazistas. Era uma chance de combater de uma vez seus dois piores inimigos, os ingleses e os judeus que iam se fixando na Palestina.
De 1928 para cá, porém, as coisas ficaram um pouco mais complicadas. Para começar, a Irmandade cresceu. E cresceu muito. Hoje ela existe em mais de 15 países, atuando como um misto de movimento religioso, partido político e organização de auxílio aos necessitados --o que ajuda a explicar seu sucesso.
Ela existe até em Israel, onde está representada na Knesset (Parlamento). No Egito, embora tecnicamente ilegal, é bastante forte. No pleito legislativo de 2005, membros que concorreram como "independentes" obtiveram 88 cadeiras (20%) no Parlamento.
Seu braço nos territórios palestinos é o Hamas, que controla Gaza. É o único lugar onde seus representantes assumiram de fato o poder. Não chegaram a promulgar uma república islâmica, mas impuseram uma série de restrições religiosas, em especial contra as mulheres.
A questão fundamental agora é descobrir quais são os objetivos atuais da Irmandade, pois, se houver eleições livres no Egito, eles teriam grandes chances de vencer uma disputa para o Executivo e/ou de conquistar um naco substancial do Legislativo.
Parte dos analistas estima que o movimento vem passando por um processo de moderação. Eles seriam hoje como as democracias cristãs europeias na década de 70 ou como o Partido do Desenvolvimento na Turquia, originalmente religioso, mas que parece ter incorporado a democracia em seu DNA.
A favor dessa tese está o fato de que em diversas ocasiões, como o 11 de Setembro, o grupo condenou a violência (mas em muitas outras, aprovou, em especial os ataques suicidas contra israelenses). Além disso, um dos principais inimigos da Irmandade hoje é a Al Qaeda, a organização jihadista capitaneada por Ossama bin Laden.
Não obstante a recente desavença, a Irmandade, através de um de seus principais ideólogos, Said Qutb (1906-66), autor de uma obra com fortes traços antiamericanos, influencia a Al Qaeda até hoje. Seus militantes são por vezes chamados de qutbistas.
Outra parte (menor) dos analistas, porém, diz que a contenção que a Irmandade exibe atualmente é calculada e desaparecerá depois que chegarem ao poder, quando tentarão restaurar o califado.
O mais provável é que a própria organização esteja dividida em relação a seus objetivos finais. Se você entrevistar um dos porta-vozes encarregados de manter contatos com a mídia estrangeira, certamente encontrará a face moderada do movimento. Se for conversar com um pregador de rua em Ismaília, provavelmente vai se deparar com uma outra Irmandade. Resta saber qual ala prevalecerá.
De qualquer forma, não há nenhum motivo para o Egito (e os demais países árabes) não tentar instituir uma democracia autêntica, que não chega a ser incompatível com a "umma" (talvez o seja com a "sharia", a lei islâmica, e outros pontos da religião, mas não com a noção de comunidade). Não estamos, afinal, falando de tribos indígenas perdidas na Amazônia, mas de sociedades razoavelmente industrializadas, letradas e que já foram, num passado meio longínquo, o farol da humanidade. Não será, por certo, um processo fácil, como o demonstram Iraque, Líbano e territórios palestinos, os países árabes em que a população pode pelo menos expressar-se livremente nas urnas. Mas depender de ditaduras mais ou menos selvagens para conter os religiosos não é exatamente o que eu chamaria de negócio tentador.
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